quarta-feira, 24 de julho de 2013

Crítica: Só Deus Perdoa / Only God Forgives (2013)

"Time to meet the devil"
Billy

*9/10*

Obscuro, inquietante e hipnótico são três características que assentam bem a Só Deus Perdoa, o filme que marca o regresso de Nicolas Winding Refn. A violência - física e psicológica - continua, fazendo jus à obra do realizador, mas muito mais há para além do espectáculo visual que a acompanha. Bem mais complexo do que aparenta, Só Deus Perdoa é uma experiência sensorial e sentimental - consegue mexer com os sentidos, mas igualmente com o que de mais profundo há em cada um de nós.

"Está na altura de conhecer o Diabo", diz Billy ainda no início do filme. A frase serve de passaporte para o que vem de seguida. As meninas devem fechar os olhos e os homens prestar atenção, como a certo momento é aconselhado. Ao longo da carreira, Refn tem-se aproximado do título de realizador da "ultra-violência", que cada vez mais se insiste em usar para caracterizar a sua filmografia. Nesses termos, Só Deus Perdoa não foge à regra, chegando mesmo a ser aterrador num sentido mais lato, com a banda sonora a assumir um papel fulcral nesse aspecto.

A mais recente longa-metragem de Refn apresenta-nos Julian (Ryan Gosling), que está à frente de um clube de boxe tailandês, fachada para um negócio de tráfico de droga. Mas quando o seu irmão é assassinado e a sua mãe, Crystal (Kristin Scott Thomas), chega a Banguecoque para reclamar vingança, tudo muda. No seu caminho está Chang (Vithaya Pansringarm), um misterioso policia, idolatrado pelos seus pares.


A Banguecoque nocturna serve de cenário - muito exótico - para a acção de Só Deus Perdoa. O argumento, longe de exaustivo e com alguns vazios por preencher, oferece muito mais do que parece à primeira vista. Sangue e violência abundam ao longo dos 90 minutos da longa-metragem. Poucas falas, muita acção, recheada de cores eléctricas - vermelhos, amarelos e azuis "iluminam" a maior parte do filme -, e temáticas profundas. Requere-se, sobretudo, sensibilidade - física e psicológica - para chegar ao âmago de Só Deus Perdoa.

Se por um lado temos essa "ultra-violência" de que tanto se fala, por outro lado temos a possível justificação para que ela aconteça. Uma das lições a tirar do novo trabalho de Refn é a de que todos os actos têm consequências - para o melhor e para o pior -, e sabemo-lo desde logo através do título.

Ao mesmo tempo, a importância da família surge como outro tema-chave em Só Deus Perdoa. O caso mais flagrante é o da família protagonista - Julian, Billy e a mãe Crystal. Parece existir uma espécie de complexo de Édipo, uma relação complicada e um tanto sinistra entre esta mãe e filhos. Julian é um filho submisso, com claros problemas que daí advêm. Perto do final podemos testemunhar a única aproximação real a uma mãe que ele venera, mas desconhece, que lhe parece inatingível. Ao mesmo tempo, outras famílias surgem ao longo do filme, e, em todas elas, uma forte mensagem nos é transmitida.


A quase ausência de falas de Ryan Gosling durante o filme (22 linhas, ao todo) é provavelmente a  maior semelhança que se poderá apontar relativamente a Drive, onde o protagonista também pouco falava. Aliás, sabe-se que os diálogos são secundários para Refn - lembremo-nos de One-Eye que não diz uma única palavra em Valhalla Rising (2009). E é nesse filme que pode recair a maior parte das comparações com Só Deus Perdoa. O ritmo lento é comum a ambos, bem como os vermelhos-fortes, muitas vezes em tom premonitório - premonições essas que também surgem constantemente de forma subtil ao longo de Só Deus Perdoa.

Todavia, é esteticamente que Só Deus Perdoa atinge a excelência. A realização alia-se à fotografia (sob a direcção de Larry Smith) e, juntas, oferecem-nos os mais belos quadros pintados num ecrã de cinema. Em cada cena presenciamos planos de excelência, geometricamente estudados e iluminados de forma brilhante. A câmara olha através das divisões de uma casa, espreita por entre as portas, oferecendo uma experiência única. Em união perfeita com a componente visual e acção está a banda sonora, de Cliff Martinez, que nos faz temer aquelas personagens e consegue, por vezes, contrastar de forma arrepiante com aquilo a que assistimos.


O elenco tem um desempenho irrepreensível. Ryan Gosling não descura a personagem e, mesmo pouco dizendo, consegue transmitir-nos o essencial através da sua (in)expressão. O protagonista revela uma arrepiante submissão perante a mãe, uma sexualidade complicada, e um sentido de justiça que lhe está no sangue. Apesar da coragem que demonstra, parece esconder em si muitos medos - encontramo-los nos corredores e quartos escuros, que abundam em Só Deus Perdoa. Deslumbrante está Kristin Scott Thomas, com uma interpretação magistral da maliciosa mãe, Crystal. A actriz prova-nos aqui, uma vez mais, o seu talento e glamour, até na pele da mais fria e asquerosa mulher. Quando surge, Crystal é acompanhada por muitos tons de amarelo, que se podem relacionar com todo o luxo que a rodeia - as cenas no hotel são um óptimo exemplo. Por seu lado, o grande destaque vai para o actor tailandês Vithaya Pansringarm na pele do polícia Chang. Com uma interpretação desconcertante, ele faz-nos temer. O seu sentido de justiça pode fazer-nos compará-lo ao "Deus" do título do filme, ou ao "Diabo" que vamos conhecendo. É muito interessante observar como, depois do dever cumprido, o polícia termina a noite com os colegas de trabalho num karaoke.

Refn traz-nos um filme difícil de digerir, que apela, acima de tudo, a uma forte reflexão sobre o conceito de justiça (divina?). Uma obra de uma beleza visual estonteante, repleta de uma violência estética que poucos nos proporcionam: Só Deus Perdoa, mas o público também.

6 comentários:

Sam disse...

A expectativa, por estes lados, continua alta.

A ver em breve — e perceber se também "perdoo" :)

Cumps cinéfilos :*

Inês Moreira Santos disse...

Estou muito curiosa para saber a tua opinião. :)

Cumprimentos cinéfilos :*

Carlos Branco disse...

Era provavelmente o filme que aguardava com mais espectativa para este ano e fico feliz em ver que não fui defraudado. grande filme, fantástica fotografia, soberbo encaixe musical, uma grande realização e mesmo representação apesar de se dizer pouco. contudo confesso que é um filme que suscita uma grande discussão. há quem prefira ver nesses vazios que existem na narrativa uma oportunidade de liberdade de interpertação e escolha que é dada pelo realizador, outros acharão que isso é uma falha de um realizador que prescinde de quase tudo em função da forma. já vi pela internet diversas visões sobre o assunto , mas em blog foste a primeira que li a fazer uma critica positiva ao filme, a qual me revejo inteiramente.

Inês Moreira Santos disse...

É realmente um filme de amores e ódios, mas no conjunto - e claro, esta é a minha opinião, haverão muitas outras - é uma grande experiência cinematográfica para o espectador. E há mais conteúdo para além da forma - brilhante, por sinal - do que muita gente está a ver.

Obrigada pelo comentário, Carlos.

Cumprimentos cinéfilos.

Eu + A Melhor Profissão do Mundo disse...

filme imperdoavel, uma vez tendo Ryan (monosilabando, praticamente), e tendo o diretor de Driver.
Suas longas tomadas nao acrescentam em nada à trama, e pior, nao se justifica. Respeito a opiniao e critica. Senti um filme sem profundidade, ao mesmo tempo que nao tem muito a dizer. Sinto que o diretor acredita esta fazendo algo sem precedentes na historia do cinema (isso é bom, ele acredita no que faz), mas acreditar aqui nao significa que ele alcançara, de fato. O melhor momento do filme esta com Kristin Scott Thomas, em que se da a catarse do filme. A boa fotografia, adornada pelos neons, sao incapazes de acobertar o roteiro vazio. Nao a toa a critica mundial caiu matando em cima do filme. Odeio essa critica mundial, e odeio tambem concorda com ela. Por sua vez, Only God Forgives detem em seus minutos curtos(90 min, se nao me engano), mas longos, toda a intençao de ser um cult, algo memoravel pro cinema (como Blade Runner, a exemplo visto pela critica, quando lançado, como um grande flop, e hoje o temos como referencia), mas que dificilmente vai conseguir ser lembrado como algo realmente digno de ser lembrado. As vezes o novo nao é tao bom. Otimo Blog, estarei acompanhando

maurici disse...

Assisti ao filme há pouco, mas minha experiência com ele ainda dura. A precisão dos planos é realmente impressionante. E tem ali Édipo Rei, mas como se Édipo soubesse que matou o pai e ama a mãe desde o início do filme. É um filme que leva a reflexões e certamente dará assunto ao café amanhã.
Gostei de sua crítica e sua página está salva nos meus favoritos.
Bons filmes pra você!