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terça-feira, 28 de outubro de 2014

Doclisboa'14: Pára-me de Repente o Pensamento (2014)

*8.5/10*

Jorge Pelicano (que já venceu o festival com o documentário Pare, Escute e Olhe) trouxe à Competição Portuguesa de Longas provavelmente o filme mais envolvente e poderoso de todo o Doclisboa'14. Em Pára-me de Repente o Pensamento, entramos numa viagem ao Centro Hospitalar Conde Ferreira, um hospital psiquiátrico no Porto, e partilhamos momentos com os seus doentes, que vagueiam pelos corredores entre cafés e cigarros, terapias que apelam aos sentidos e às emoções e rotinas que os puxam para a realidade. Do mundo exterior, chegamos nós, que assistimos, e o actor Miguel Borges, que ali procura a sua personagem para uma peça de teatro de comemoração dos 131 anos do Hospital, inaugurado a 24 de Março de 1883.


Nos primeiros minutos, preparamo-nos para entrar no Conde Ferreira, vemos os utentes e a sua rotina e conhecemos desde logo alguns personagens. Somos, para já, meros observadores: dos gestos, das palavras. O Sr. Abreu e o Alberto começam logo por nos conquistar e irão acompanhar-nos nesta visita. A eles juntar-se-ão outros utentes do Hospital: Zé Pedro, Joaquim Carvalho, Rosa Guedes e Torres.

A chegada de Miguel Borges torna-nos mais activos em Pára-me de Repente o Pensamento. Depressa damos por nós como parte integrante daquele local, partilhando dramas, amores e terapias. Tal como Miguel, vamos entrando no íntimo dos doentes, escutá-los e compreendê-los, sem preconceitos. E Jorge Pelicano sabe bem como nos aproximar de realidades distantes, sabe como dar um murro no estômago ao espectador, que, inevitavelmente, irá olhar com outros olhos para os doentes psiquiátricos - Miguel Borges será a personificação desse entendimento, dessa compreensão. O actor observa, questiona, sem nunca emitir juízos de valor, ao mesmo tempo que procura também ali a inspiração para escrever uma peça de teatro.

A excelente montagem do documentário contribui em muito para o envolvimento do público, bem como a realização rica em planos intimistas e curiosos (até espreitamos pela fechadura). Há uma enorme atenção aos pormenores e aos gestos repetitivos. Cafés, cigarros, moedas e a esperança depositada no euromilhões. A certo momento, Miguel pergunta a um dos doentes do Conde Ferreira: "O que é que fazias com tanto dinheiro?". A resposta parece ser simples e bem humorada: "Ficava mais tolo do que sou". Aí está um dos bons exemplos do que vamos encontrar neste filme: sorrisos, no meio de uma realidade dura que não deveria estar assim tão distante.


E vamos perder-nos entre conversas profundas ou outras extremamente divertidas - que seguimos, atentos -, mas todas elas tocantes. Tudo enquanto Miguel Borges prepara o seu papel para a peça de teatro do Hospital, em que encarna o poeta Ângelo de Lima, que ali esteve internado, e se inspira para futuros projectos. O actor quer encontrar a melhor forma de interpretar o poema que dá título ao documentário, Pára-me de Repente o Pensamento, e ultrapassa todos os seus limites para o conseguir perante o espanto do espectador e dos utentes.

E entre ensaios e preparação da personagem, alguém diz a Miguel: "Nunca tive ninguém que me inspirasse tanto". Eis a mútua satisfação e entreajuda entre actor e doentes e, muito possivelmente, uma das experiências mais marcantes da vida do actor.

Damos de caras com o desespero de alguns, com a dor, mas também com a esperança, a amizade e o amor. Depois de Pára-me de Repente o Pensamento não seremos os mesmos e Miguel também não. A magia do plano final é um culminar em beleza de um trabalho que fazia falta e que devia chegar a todos.

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