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quinta-feira, 12 de março de 2015

Crítica: Leviatã / Leviathan (2014)

*8.5/10*

Eis o desmoronamento de uma Rússia, sem ética, moral, valores ou justiça. Andrey Zvyagintsev trouxe ao cinema um irónico e provocador retrato de uma sociedade em crise e decadência, onde o poder, a religião, a política e as influências dominam a lei e as decisões.

Kolya é o nosso protagonista, que mora numa pequena cidade à beira do mar de Barents, no norte da Rússia. Tem uma garagem ao lado da casa onde vive com a mulher Lilya e o filho Roma, de um casamento anterior. O Presidente da Câmara da cidade, Vadim Shelevyat, deseja apropriar-se do terreno de Kolya, da sua casa e da sua garagem. Tem projectos para aquela propriedade. Inicialmente tenta comprá-la, mas Kolya não suporta a ideia de perder tudo o que possui e que faz parte da sua vida desde que nasceu. É então que o Presidente da Câmara se torna mais agressivo e o caso vai a tribunal.

A luta de Kolya é uma sátira que entristece e revolta, não fosse o problema mais real do que gostaríamos. Aí está a burocracia que só atrapalha, a incerteza que rodeia os que cumprem a lei, a falta de esperança ou confiança nos que nos rodeiam ou nos que governam... enfim, uma realidade dura e crua, em alguns aspectos semelhante a tantas outras, mas muito russa, nem que seja pelo apelo à história política que encontramos, por exemplo, nas fotografias dos mais famosos políticos do país. E é aí, nessa identificação politico-geográfica, que surge a maior provocação de Leviatã: Putin surge numa moldura na parede do gabinete de um corrupto, algumas personagens resolvem divertir-se com o tiro ao alvo às fotografias de antigos líderes russos ou fala-se em Boris Yeltsin como um bêbedo - de quem os nossos protagonistas parecem seguir as pisadas, com a vodka a comandar.


E num circulo vicioso de ligações de poder e influências que derrotam qualquer um, seguimos esta história, atentamente e sem grandes expectativas de justiça. O desespero e a mentira sobrepõem-se à esperança, nesta Rússia gelada, perdida e solitária. A corrupção e a vodka dominam e aquecem a trama, que se desenrola com a religião a pairar, até mesmo sobre o protagonista, qual Job e as suas provações (cujo livro bíblico muitos têm comparado a Leviatã). A última cena do filme faz um irónico resumo de tudo o que observamos, qual espectador atento mas passivo, ao longo de mais de duas horas.

Além do argumento brilhante de Oleg Negin e Andrey Zvyagintsev, tecnicamente, Leviatã distingue-se pela extraordinária fotografia de Mikhail Krichman, que nos proporciona planos e paisagens inesquecíveis, que acompanham na perfeição a banda sonora intensa de Philip Glass. Por outro lado, Zvyagintsev coloca-nos a assistir a muitas das cenas através de um vidro (seja o vidro que divide duas salas, o vidro de um carro ou de uma janela), num jogo que desafia o espectador, e onde o realizador reforça a nossa posição passiva perante os acontecimentos e, ao mesmo tempo, símbolo dos entraves que se colocam no caminho de Kolya, nesta dura batalha para proteger o que é seu.

Leviatã, com o seu tom pesado mas descomprometido e provocador, é um alerta para o mundo, que não lhe ficou indiferente. Uma provocação, mas, acima de tudo, uma chamada de atenção, para que esta Rússia aqui filmada não perdure, e para que o espectador se indigne e revolte contra o "estado das coisas", e não se contente em ficar sentado a chorar junto ao esqueleto de uma baleia, por muito bela que a imagem seja.

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