sábado, 7 de maio de 2016

Crítica: Axilas (2016)

"A axila da mulher tem uma beleza misteriosamente inefável que nenhuma outra parte do corpo feminino possui"
*8/10*

Axilas, o derradeiro filme de José Fonseca e Costa, é um presente cheio de humor negro e muita personalidade. O cineasta escrevia na nota de intenções para esta longa-metragem que seria "um conto do absurdo, insólito a tal ponto que vai fazer rir a partir da matéria de que são compostos acontecimentos pelos quais se chora, embora se saiba que a morte vive dentro de nós desencadeando-se, as mais das vezes, quando por ela não se espera." As intenções cumprem-se mas com um pesar adicional, já que não se esperava que, aquando da estreia, Fonseca e Costa já não estivesse entre nós (o filme foi terminado por Paulo Milhomens). E ele faz-nos mesmo rir com as desgraças, um humor fúnebre mas inteligente e jovial.


A partir do conto homónimo do escritor brasileiro Rubem Fonseca, Axilas apresenta-nos Lázaro de Jesus (Pedro Lacerda), filho adoptado de uma senhora rica de Lisboa, a quem chama Avó (Elisa Lisboa). É ela que o apresenta ao Padrinho (André Gomes), um grande empresário que o toma como seu protegido, e a Angelina (Margarida Marinho), a mulher com quem a Avó pretende que ele se case. Mas Lázaro tem outros interesses ocultos, o mais importante dos quais é uma fixação obsessiva pelas axilas femininas. Quando vê a violinista Maria Pia (Maria da Rocha) a tocar, Lázaro apaixona-se de imediato e passa a viver em função dela, o que irá precipitar um final imprevisível.

A educação extremamente católica molda todos os acontecimentos do filme e será a responsável pelo inesperado final. A Avó, o padre, a beata ideal para casar e a confissão diária dominam a existência de Lázaro, que vê assim anulada a sua personalidade, na Lisboa dos seus pecados.


Numa primeira metade mais sombria, com um humor negro que quase nos culpa por lhe acharmos graça, as descobertas do protagonista fazem-no mudar e construir uma personalidade sua, que acompanhamos ao longo da segunda metade. Num tom mais apaixonado e enlouquecido, com um humor alegre e sarcástico, seguimos os passos de Lázaro, que, influenciado pelos segredos e fetiches do falecido avô - as axilas e o seu lado sexual - nos surpreende. A beleza e a poesia que descobre na axila feminina são o motor que desencadeia esta súbita mudança, no protagonista e na longa-metragem. Parece que vemos dois filmes num só, que se encaixam, justificam e completam.

Axilas é feito de analepses que nos fazem compreender melhor a timidez, recato e submissão de Lázaro. Ao mesmo tempo, há uma crítica social óbvia, quer aos ociosos que vivem da riqueza da família, como à ganância e falta de moral dos que se dizem religiosos. Os trocadinhos provocadores e os diálogos, que vão do mais ordinário ao mais palavroso, são outra das singularidade de Axilas.


Pedro Lacerda é irrepreensível como Lázaro, um actor que sabe usar como ninguém as expressões faciais, transmitindo tormento e dor ou ausência de arrependimento. Ele, um poeta, que é o fruto da falsidade e repreensão constante (lê Camilo, não come bolo) e sem razão.

Original, irónico e mordaz, José Fonseca e Costa deixou-nos uma despedida em grande. Axilas é triste e alegre, insólito mas cheio de verdades. Uma comédia negra bem acompanhada pela música clássica e pelas axilas da violinista, qual perdição de Lázaro.

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